
O termo comunicação é sempre lembrado cada vez que as pesquisas de clima descrevem os problemas de uma empresa. É o que escuto nas primeiras reuniões para identificação das demandas para um programa de desenvolvimento de lideranças ou alinhamento estratégico. Falta de compromisso, engajamento, conhecimento e, em consequência, baixa produtividade, seriam corrigidos com uma boa comunicação interna. O desejo oculto na frase é mais controle, não mais informação.
A comunicação interna não é um mero canal de
mensagens; é um campo de batalha, um instrumento de poder sutil, uma máquina de
engenharia social que molda a cultura da empresa e a própria identidade dos empregados,
chamados de colaboradores por quem quer ser visto como politicamente correto. O
que acontecerá se o colaborador não quiser colaborar?
Para entender o que realmente se passa, e não se contentar
com a patacoada dos livrinhos de autoajuda e dos autodenominados, coach de
resultados — seja lá o que for isso… — é preciso recorrer a pesquisadores
sérios. A Psicologia Social estuda a comunicação
organizacional como uma das ferramentas nas relações com os trabalhadores.
O que dizem os gurus
O primeiro da lista é Antonio Gramsci. Ele nos explica o que
se esconde sob o manto da comunicação. Ela é a principal artífice da hegemonia,
essa técnica sofisticada de obter consentimento sem usar a força bruta. Quando
a empresa repete, nos congressos e nas plaquinhas dos corredores, frases motivacionais sobre a importância de “vestir a camisa”, ou de se ver como pertencendo a uma “família”, ela não está somente informando. Está
persuadindo, construindo uma narrativa para convencer o empregado de que os
interesses da empresa são os seus próprios. Não há poder mais sólido do que
aquele que se sustenta não pela coerção, mas pelo consentimento “voluntário”,
uma adesão fabricada.
Essa máquina ideológica se encaixa na teoria de Louis
Althusser. Se o Estado tem seus aparelhos repressivos — a polícia, o
exército —, a empresa, através de seus departamentos de Recursos Humanos, atua exatamente
como os Aparelhos Ideológicos de Estado. Por meio de manuais de conduta,
treinamentos de soft skills — outra expressão contaminada ideologicamente — a
corporação molda a pessoa, formata sua identidade para que se alinhe com seus
objetivos estratégicos e comportamentos que chama de engajados. O empregado é,
na prática, um ser capturado, um boneco cujos cordéis são puxados por uma
ideologia que lhe é alheia, mas que ele, por um truque de mágica, internaliza
como sua.
Pierre Bourdieu denuncia o jogo de poder que se
estabelece nas organizações. A empresa é uma arena onde se luta por prestígio e
reconhecimento. E a comunicação, nesse tabuleiro, é uma arma. Enquanto os gerentes e supervisores trabalham
na motivação — outro termo contaminado — dos empregados, a maioria do tempo
e energia dos altos dirigentes e investido na conquista ou na manutenção de seu
cargo e poder. Possibilita construir o capital simbólico da organização,
um capital de prestígio e autoridade. Ao premiar um certo tipo de habitus
— um conjunto de comportamentos e gostos que interessa ao poder —, ela legitima
hierarquias e faz com que a desigualdade pareça algo natural, uma recompensa
para a conformidade.
O que Adorno e Horkheimer, os titãs da Escola de
Frankfurt, disseram sobre a indústria
cultural se aplica perfeitamente à comunicação corporativa. A repetição massiva de mensagens padronizadas
e a tentativa de homogeneizar o pensamento e o comportamento dos colaboradores
é uma versão em miniatura da manipulação da sociedade. O empregado,
desestimulado a ter pensamento crítico, é tratado como um mero consumidor de
conteúdo empresarial, um zumbi que aceita passivamente a cartilha que lhe é
imposta.
Temos agora Thomas
Piketty, o economista que expôs a brutalidade da desigualdade. Enquanto o
salário de uns definha, os bônus dos executivos disparam a uma velocidade
espantosa. A comunicação entra em cena para justificar o injustificável. Ela
reforça a ideologia de “mérito”, convencendo as pessoas de que o
sucesso é uma recompensa natural para o “trabalho duro”, ocultando a
desigualdade estrutural. A comunicação, assim, se torna um instrumento para
manter a disciplina e conformidade, para convencer o empregado a aceitar uma
realidade que não o beneficia.
Emenda, mas não errata :-). A citação sobre a diferença salarial entre os altos executivos e os empregados provocou polêmica entre os leitores e muitos comentários no meu e-mail e na cópia do artigo no Linkedin. Entretanto, as críticas ao Piketty embaçam a essência do seu pensamento. Não é uma questão de “salários e benefícios”, muito menos de “avaliação de desempenho”. Desde os anos setenta/oitenta convivemos com a doença ética do neofordismo e empreendedorismo. A desigualdade de renda e riqueza é obscena e os órgãos de comunicação são “aparelhos ideológicos” que reproduzem na empresa esta ideologia. Uma leitora reclamou que eu teria esquecido de Lacan. Não esqueci, é que o viés do artigo era a Psicologia Social; porém, a Psicanálise talvez explique alguns comentários irados: a aceitação do “discurso do mestre” poderia provocar a aceitação de ser dominado e o “gozo da obediência”.
O desafio de quem busca a melhoria da comunicação não é
somente medir engajamento e buscar compromisso e compreensão; é questionar permanentemente
seu papel. Está realmente a serviço das
pessoas ou aperfeiçoando o mecanismo de controle? O que está em jogo é a
liberdade e a dignidade do trabalhador.
Para saber mais:
Estes livros podem ser encontrados com uma breve busca nos
sites de pesquisa da internet. Seus preços variam conforme a livraria, editora, etc. Há resenhas ótimas na Wikipedia.
·
Hegemonia, cultura e política - Antonio
Gramsci
·
Aparelhos Ideológicos de Estado - Louis
Althusser
·
A Distinção: Crítica Social do Julgamento
- Pierre Bourdieu
·
Indústria Cultural - Theodor W. Adorno e
Max Horkheimer
Professor, muito obrigada. Já faz tempo que fui sua aluna na Dom Cabral. Lá o senhor não podia ensinar estas coisinhas, que pena. Mas, cadê o Lacan nas sugestões "para saber mais?"
ResponderExcluirEsta provocação da minha aluna "anônima" me estimula a escrever um outro artigo, mas foi tão estimulante que preciso responder agora. Em breve me estenderei...
ExcluirO que a análise lacaniana nos revelaria é que a comunicação corporativa se encaixa perfeitamente no que ele chamou de *Discurso do Mestre*. Nele, a liderança (o "Mestre") emite a ordem, a visão, a direção. A serviço dessa ordem, estão os manuais, as métricas e os procedimentos, formando um "saber" que serve ao poder. As falácias da "gestão participativa" são técnicas bem elaboradas de fazer o colaborador imaginar ser o autor do *discurso do mestre*. Alguém tem dúvida que alguma contribuição vinda de um seminário de "planejamento estratégico" seria aprovada se fosse contrária aos interesses da empresa? O que é o *engajamento*, afinal?
Diria Lacan que é uma forma de *gozo* uma satisfação extraída da própria submissão consentida. Aguardem!
Querido maestro insuperable e inolvidable, tuve el honor de recibir tu guía en la fusión de nuestro periódico en Concepción, Chile, con un usurpador de nuestra tradición y cultura en Santiago. Ahora entiendo el motivo de algunos de tus esfuerzos por hacernos comprender que debemos centrarnos en nuestra empleabilidad y no en la aceptación incondicional de los mensajes de la corporación invasora. Me llamo García (quizás no lo recuerdes), pero conversamos mucho durante la cena. ¿Aún disfrutas de la pizza y una buena copa de vino chileno? Muchas gracias, soy un lector habitual de tu blog y tus libros.
ResponderExcluirHola, querido amigo García. Gracias por tus amables palabras. El tema fue realmente de gran interés. Lo que no esperaba era que Lacan fuera recordado. Escribiré otro artículo (he añadido una corrección a este texto), pero dadas las repercusiones, tendré que estudiarlo con más detenimiento. ¡No te lo pierdas!
ExcluirMuito bom conteúdo. Visitem https://blogdoprofessorari.blogspot.com/
ResponderExcluirObrigado por partilhar, meu querido mestre. Concordo totalmente. Nas minhas atuações, costumo utilizar a matriz de relacionamentos cruzados, para estimular conexões fracas ou inexistentes, alinhar propósitos e fortalecer o sentido de pertencimento.
ResponderExcluirEm meu trabalho final do posdoc, enfatizo a importância da identificação e mensuração dos relacionamentos para o desenvolvimento sistêmico.
Um abraço.
Gostaria de expressar minha gratidão pelo conteúdo que o senhor compartilha em seus blogs. Suas reflexões sempre me provocam a sair da zona de conforto e ampliam significativamente minha compreensão sobre os temas abordados. É com grande satisfação que o incluí como uma das referências na elaboração da minha TCA no Mackenzie.
ResponderExcluirAgradeço por compartilhar sua perspectiva única sobre o mundo, que tanto contribui para nossa formação acadêmica e pessoal.
Olá! Fico muito contente em saber que minhas postagens são úteis para você. Tomara que seu TCA tenha sucesso, estou na torcida. Estou sempre às ordens. Você pode me escrever diretamente. Um abraço e muito obrigado por seus comentários.
Excluir