Matemos o Vampiro 02-WEBER

O poder é tema de mortal importância em Transmôneya, pátria dos vampiros.  Os aldeões sabem que – neste reinado de Liberdrácula – assim que forem muitos, ou a palidez tomar conta de seus rostos, serão excluídos. É certo que, nas masmorras onde trabalham, o principal tema das conversas é difamar os vampiros; porém,  no íntimo, cobiçam um dia ser um deles. Em troca, o sacrifício de suas vidas. Seres vivos tem uma incômoda variabilidade, instabilidade e espontaneidade de atos humanos individuais. É praticamente impossível fazer uma quantidade enorme de vivos serem sugados a não ser controlando-os sem piedade. As igrejas e os exércitos ensinaram como enfeitiçar os aldeões. Primeiro, transformá-los em cargos e organizá-los em funções; segundo, estruturá-los em hierarquia de autoridades; terceiro, substituir seus valores pessoais pelos valores organizacionais; finalmente, procriar uma corte de vampiros para gerenciar toda a estrutura.

A grande virtude é a obediência e quem mais a tem é escolhido. Uma noite, em ritual satânico chamado happy hour, um aldeão sucumbe e aceita ser possuído por um chefe que doravante o desfrutará. Os dentes desvirginando seu pescoço; o gozo na liturgia da promoção; a volúpia do poder: nasce um novo vampiro, pronto para conhecer os mistérios do castelo. Weber – filósofo da burocracia – teve acesso aos textos dos bruxos e conheceu as Sete Virtudes Vampirescas

1 – saber quem é seu líder e obedecê-lo incondicionalmente; 
2 –sufocar sua personalidade e jamais expressar sua opinião; 
3 – suportar qualquer coisa pela segurança de recompensas futuras; 
4 – apunhalar sempre pelas costas, justificando que o faz pela sobrevivência do castelo; 
5 – modelar a mente de acólitos fazendo-os competir para ser vil.
6 – jamais duvidar da verdade destas virtudes
7 – renegá-las em público.

Alguns aldeões conseguem escapar da maldição. Trabalham para o castelo, mas não aceitam que suas regras sejam únicas e muito menos corretas. Sabem que Liberdrácula trouxe no seu esquife o pior do Século XVIII e ridicularizam os textos dos bruxos de aluguel que as chamam de modernas. Seu projeto de vida rejeita galgar dos porões às torres, avaliados por vampiros cujo critério maior é  a cordialidade da vítima em sorrir quando sua jugular é ferida. Defendem que a missão das empresas, dos produtos e dos mercados deveria ser a felicidade das pessoas e que as regras do castelo deveriam garantir, antes de tudo, a dignidade dos que lá trabalham. Quanto aos vampiros, bem... eles não são humanos.

Matemos o Vampiro 01-TOURAINE

Não é mole a vida de vampiro: trabalhar em uma torre; ser temido por todos; poder sair somente à noite; ter que existir à custa do sangue que suga dos aldeões que para ele trabalham. Exatamente igual a de um executivo nestes tempos de globalização. Vampiros têm uma vida  sexual muito complicada: poucas fêmeas chegam ao topo da hierarquia; quando o fazem, aparecem em capas de revistas. Porém, ao virar vampiro, nada as distingue dos colegas machos, nos hábitos, na alimentação e nas atitudes. Liderança é outro problema muito sério. Ninguém gosta de oferecer seu pescoço a um chefe. Os vampiros são treinados a motivar os aldeões a freqüentar seus castelos e ficar por lá até que, anêmicos, sejam substituídos. Dizem literalmente que a “empresa precisa de sangue novo” e praticam rituais satânicos para fazer isso.

Reengenharia foi o nome de um dos últimos.  Há anos houve uma escassez de aldeões e um castelo era tanto melhor quanto mais deles estocados. Então foi decretada a globalização. Para apoiá-la, moderna tecnologia garante que sempre é possível  transfusões entre diferentes castelos, por mais distantes que estejam. Milhares de aldeões foram eliminados junto com alguns vampiros sem empregabilidade. Meritocracia é o nome dado quando sobrevivem aqueles mais capazes, sacralizados em textos de bruxos muito espertos, pois escrevem nos livros somente aquilo que  interessa ao Grande Mestre. Atualmente o trono é de Liberdrácula que reinou no século XVIII e ressurge implacável. Não podemos subestimá-lo: tem poções tão poderosas ao ponto de fazer todos se iludirem que suas idéias velhas são inovadoras e as inocula a cada pescoço mordido, fecundando seguidores.

Um vampiro pós moderno perdeu o referencial cultural; de seu país de suas crenças e de seus valores. Diria Touraine – filósofo  francês – que  ele é um plágio da libertinagem aristocrática da revolução industrial, fascinado pela tecnologia e concepção narcisística do poder, enclausurado no presente perpétuo que chama de mudança, mas que, na verdade, suprime o espaço temporal que permite construir a unidade da cultura. Esquizofrênico, seu projeto de vida cindiu-se, pois se separou do conjunto histórico onde foi formado e não consegue – desde quando ungido executivo globalizado – libertar-se de que seja definido senão pelo que quer a empresa, escrava da religião do mercado. Nas torres ventiladas do castelo dizem ao seu lado humano para ser empreendedor, exigem-lhe a competência, pedem que tenha espírito de equipe e respeite os aldeões. Nas masmorras escuras da empresa pós moderna deve manter eretos os caninos da competitividade, agir com obediência pusilânime e egoísmo selvagem da lei do mais forte. A este lado vampiro precisamos ferir o coração, não com uma estaca de madeira, que mate o homem, mas encharcando-o de ética, trazendo-lhe a luz da crítica e da informação.