A ESCRAVIDÃO VIRTUAL E A DIGITALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES TRABALHISTAS


A digitalização das relações trabalhistas é um desafio complexo com implicações multifacetadas. A compreensão das dinâmicas que levam à desumanização exige postura ética dos gestores de Recursos Humanos das empresas.

Há alguns meses fui convidado para conversar com um grupo de jovens de uma comunidade – nome politicamente correto para as favelas – na periferia de São Paulo assistida por religiosos de uma associação eclesiástica beneficente.

Denunciei que trabalhavam com bicicletas alugadas de um banco, se endividavam com financiamento de motos, carros, ou com aluguéis extorsivos de locadoras, muitas vezes sem seguros e com cláusulas leoninas. Obedeciam a regras de operadoras de plataformas que lhes negavam direitos trabalhistas mínimos. Todas as despesas com manutenção, combustível, alimentação eram por sua conta. Não tinham repouso semanal remunerado, férias, planos de saúde, previsões para aposentadoria. 

Provoquei uma revolta no grupo. Argumentavam que “eu queria tirar deles o seu trampo e a sua liberdade”. Na sua miopia, se percebiam como empreendedores autônomos, independentes e livres.

Não são livres! Sob o apelido falacioso de parceiros submetem-se a metas de produção e assiduidade. Os algoritmos das operadoras controlam os atendimentos, a remuneração caso a caso e a seleção dos trabalhadores. Os algoritmos são os grilhões dos novos capitães do mato da era digital nesta senzala virtual.

Chamam de liberdade o fato de não terem patrão, poderem trabalhar em várias empresas, definirem seus horários... Na prática, dependem para sua subsistência da exploração de vários patrões, concorrendo por pagamentos nos quais eles são a parte mais fraca na negociação e jornadas de muitas horas quando conseguem agendar um trampo, como dizem. 

UBERIZAÇÃO É UMA FACETA DA GIG ECONOMY

O termo GIG poderia ser traduzido como trabalho-bico. Deriva de contratos de bandas musicais que se oferecem aos bares para se apresentarem a troco de gorjetas dos frequentadores.

Quando uma empresa chama um profissional para consertar uma cadeira quebrada, dar manutenção em um computador que travou, vendedores para suprir uma demanda extra no período de Natal ou um palestrante para a convenção de lançamento de um novo produto, contrata uma pessoa de forma individual, por projeto ou tarefa. São prestadores irregulares de serviço.

A uberização é um modelo de vínculo regular com empresas que capturam para si o ganho do trabalhador e os obrigam aos seus padrões operacionais. As plataformas, através de sofisticadas tecnologias digitais oferecem um tipo específico de gig economy contratando de forma contínua e regular serviços a serem prestados aos clientes delas, não aos clientes dos trabalhadores.

No Brasil, em 2017, houve relaxamento na legislação que permitiu que fosse terceirizada até mesmo a execução de tarefas ligadas à atividade essencial das empresas. Presentemente, disseminam-se os contratos chamados de pjotização, derivados da sigla PJ. Uma pessoa física é contratada como pessoa jurídica para burlar a legislação trabalhista. 

Embora corrompendo a ética humanista da gestão de recursos humanos, a pjotização trouxe vantagens concretas para as empresas e ilusórias para os trabalhadores. As empresas se eximem das obrigações legais e dos custos trabalhistas; os empregados, sem os descontos para FGTS, INSS e outros encargos, iludem-se com o fato de sua remuneração líquida ser maior. Vendem barato seu futuro renunciando à aposentadoria e também o seu presente ao abdicarem de seus direitos de repouso semanal remunerado, férias, décimo terceiro, e indenização por demissão involuntária. 

ALGORITMOS SÃO OS GRILHÕES VIRTUAIS

Os escravos eram avaliados e mantidos conforme demonstrassem ou não capacidade de produzir e de cumprir tarefas exigidas pelos seus senhores. Não havia nenhuma proteção aos direitos e à dignidade. As jornadas eram longas e exaustivas, não havia limite, tampouco descanso regular.

O controle era feito pelos capitães do mato. Também escravos, porém com alguns privilégios. Embora o uso da força e violência fossem práticas intimidatórias, faziam uso de redes de informações e delatores que os ajudavam a manter o controle sobre fugas, não cumprimento de metas e governança. 

Estas informações eram passadas aos proprietários que as utilizavam para definir melhores perfis dos escravos a serem comprados futuramente, avaliar seus desempenhos e orientar quais mereciam ou não alguns privilégios ou punições. 

Os uberizados são monitorados permanentemente por aplicativos e algoritmos que controlam suas atividades e desempenhos, sem intervenção humana explícita, pontuam quais merecem privilégios ou punições e definem os perfis daqueles com potencial de trazer melhores resultados para a empresa. 

OS CAPITÃES DO MATO DA ERA DIGITAL

Uma macabra equação balanceava as horas, dias e semanas trabalhados, custo da alimentação e produtividade com o tempo de vida e utilidade do escravo, sua depreciação e valor de revenda. Os capitães do mato eram mais do que caçadores de fugitivos, atuavam também no manejo dos recursos – vá lá, humanos – preservando seu valor contábil. Era mais econômico dar-lhes alguns benefícios para mantê-los tranquilos na senzala e no trabalho do que acorrentados improdutivos, ou desvalorizados quando machucados por castigos. 

Trabalhadores uberizados não se depreciam. Contabilmente, não são ativos permanentes, são custos variáveis da mercadoria vendida. Quando não produtivos, a mão invisível do mercado permite substituí-los sem custo, já que podem ser encontrados e perfilados em bancos de mão de obra digitalizados e compartilhados.

Três tendências estão se consolidando na gestão dos recursos humanos: 

A utilização cada vez mais significativa de técnicas da psicologia organizacional para instituir subjetividades nas relações entre a empresa e trabalhadores. Estímulos à aceitação das normas e cooptação das vontades para o controle psicossocial mais eficaz do que as seduções motivacionais herdadas do comportamentalismo;

O enxugamento das áreas de recursos humanos criando o técnico generalista – erroneamente chamado de business partner – com responsabilidade multifuncional turbinada pela reengenharia Neofordista herdada dos modelos Toyotistas;

Desumanização das relações com os trabalhadores substituídas pelos controles digitalizados, estatísticas e modelos de inteligência artificial no processo decisório; o gestor de recursos humanos cada vez mais reduzido a um gestor de planilhas sobre recursos humanos.

Há naturalização de recrutar, selecionar e alocar pessoas como recursos a serem utilizados em detrimento do bem-estar individual. Ainda, que adjetivados com o complemento  desenvolvimento, os treinamentos online adestram para aceitação conformada de conteúdos e padrões imediatistas para o desempenho da tarefa ao invés de fomentar o aperfeiçoamento profissional; a avaliação de desempenho não contempla a integração da pessoa ao produto de seu trabalho; a liderança é estimulada a desconsiderar as causas estruturais dos conflitos e desmotivação dos empregados; por fim, as necessidades humanas são secundárias em face dos requisitos do processo produtivo e cumprimento das metas organizacionais.

O JOGO PERDE/PERDE QUE O RH PODE MUDAR PARA GANHA/GANHA

Privilegiar trabalhadores intermitentes da GIG Economy e a alta rotatividade dos uberizados prejudica a criação de cultura empresarial coesa e consistente, anula o comprometimento e engajamento. Os treinamentos breves e impessoais com conteúdo apenas operacionais corrompem a formação de equipes qualificadas e alinhadas com os valores organizacionais. A precarização das condições de trabalho cria um ambiente descompromissado com objetivos estratégicos da empresa. A fragmentação da força de trabalho e a falta de continuidade na comunicação levam a falhas operacionais. 

A dialética ensina que no processo sócio-histórico há momentos de ruptura quando, percebamos ou não, as deficiências de modelos instituídos tornam-se evidentes levando a sua decadência e substituição por novas formas de produção. O papel fundamental do gestor de recursos humanos neste momento de ruptura é aplicar as ferramentas técnicas e éticas da psicologia organizacional mais do que as industriais e econômicas para implementar políticas e práticas humanamente eficazes:

Tratar todos os trabalhadores com respeito e dignidade independentemente de sua posição, formação e hierarquia;

Manter comunicação clara e honesta com todos os níveis da organização, dando oportunidade a participar de todas as decisões que os afetam, especialmente remuneração, garantia de emprego, oportunidades de promoção;

Equilibrar os objetivos financeiros e estratégicos da empresa e o bem-estar dos empregados.

Nos fóruns internacionais – Davos, por exemplo – já são discutidos os impactos da desumanização das relações trabalho/empresa, precarização do emprego, disparidade salarial, necessidade de desenvolver habilidades e conhecimentos em um mundo em rápida mudança. Porém, o mais importante é a recuperação da dignidade e as condições de vida dos trabalhadores.

Não se espera que o gestor de recursos humanos seja um líder sindical, mas que esteja atento aos movimentos sócio-históricos que, cedo ou tarte impactarão os resultados de área e sua empregabilidade.

SAIBA MAIS.

  • Schwarcz, Lilia e Starling, Heloísa. As Barbas do Imperador. Companhia das Letras, 2004. A vida dos escravos e as condições de trabalho durante o período colonial no Brasil.
  • Schwartz, Stuart. A Escravidão no Brasil Colonial. Companhia das Letras, 2010. As práticas de avaliação e controle dos escravos.
  • Kassem, M. R. (2021). A gestão de recursos humanos como Gig Economy: carrascos ou vítimas? (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo. Papel do RH na gig economy,
  • Bessa, L. F., & Tomlinson, E. (2017). A emergência da economia de plataformas e seus impactos sobre o mundo do trabalho. Revista de Administração Contemporânea, 21(1), 142-162. precarização do trabalho, a flexibilização das relações trabalhistas e a concentração de poder nas plataformas digitais
  • Paulo Henrique Amorim. Uberização: A Nova Forma de Exploração dos Trabalhadores. Editora Trabalho Vivo (2021). A uberização como forma de precarização e desvalorização do trabalho.
  • Ricardo Antunes. Uberização e Capitalismo: Uma Análise Materialista Dialética. Boi Tempo Editorial. (2022).  A uberização no contexto do capitalismo contemporâneo, e as  desigualdades geradas pelo modelo.


ONDAS SÓCIO-HISTÓRICAS E A PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO


As estratégias organizacionais são definidas para garantir a maximização da acumulação de capital segundo as empresas sejam mais ou menos competitivas no mercado sujeito aos processos sócio-históricos. A área de recursos humanos é a operadora das relações com os empregados. A psicologia organizacional, desde os anos cinquenta, é protagonista na gestão das subjetividades constituídas e constituintes.

Neste semestre, no curso de pós-graduação em Psicologia Organizacional, tive uma turma com ótimos alunos, interessados e críticos. Um deles — formado em Filosofia — quando fazíamos uma Roda de Conversa sobre o desenvolvimento das estratégias da Psicologia Organizacional nas relações trabalho/ empresa questionou:

O quanto isso é verdade em diferentes países, diferentes épocas e diferentes culturas?

Brilhante pergunta que exige uma resposta complexa. Vamos lá!

ONDAS E RUPTURAS

Meu aluno teve total razão ao argumentar que as transformações das relações trabalho/empresa não ocorrem em um fluxo contínuo e globalizado. O processo não é uniforme no tempo e na geografia. Os saltos dialéticos datam localmente e rotulam as rupturas qualitativas quando as contradições no processo sócio-histórico — tais como ondas — acumulam-se quantitativamente. 

Estas rupturas não afetam apenas as respostas dadas pelos psicólogos organizacionais aos problemas da gestão das pessoas; afetam principalmente quais as perguntas são propostas a eles pelos detentores do poder nas empresas e seu papel, importância e posicionamento na hierarquia.  

Nos anos oitenta do Século XX, Alvin Toffler, um jornalista e escritor, fez sucesso com seu livro A Terceira Onda. A Primeira Onda, a Revolução Agrícola, iria de 8.000 a.C. até o final do Século XVIII. A Segunda Onda seria a da Revolução Industrial, do final do Século XVIII até meados do Século XX. Esta metáfora de ondas da história é didática, interessante, mas este artigo cogita aprofundar o tema.

Da segunda metade do Século XX até o Século XXI — Terceira Onda — vivemos a transição de uma economia industrial para outra baseada em informações e serviços; tecnologias digitais, computadores e telecomunicações; importância da educação e habilidades intelectuais; trabalho remoto; transformação das formas de organização do trabalho com redes ao Invés de hierarquias rígidas.

Acertou muito no seu livro futurista. Toffler descreveu como cada onda trouxe rupturas profundas, conflitos e tensões à medida que a sociedade se adaptava às novas condições sócio-históricas — o termo é meu, não dele. As ondas não se permutam completamente umas às outras; turbilhonam em teses, antíteses e sínteses com seus vales e picos presentes muitas vezes sincronicamente e, seguramente, diferentes em cada contexto social e diferentes momentos históricos.

As empresas, como as vemos hoje, nasceram nas Revoluções Industriais no Século XIX, quando o trabalho doméstico foi substituído por trabalhadores amontoados em fábricas. Foram descritas por Taylor no Século XX com a Administração Científica do Trabalho. Uma ruptura que inaugurou o Taylorismo/Fordismo.

A segunda ruptura importante ocorreu após a Segunda Guerra, em 1945, com duas ramificações: na Europa e Estados Unidos, o humanismo/comportamentalismo, na Era de Ouro do Capitalismo; e no Japão e países asiáticos, o Toyotismo.

A terceira ruptura ocorreu nos anos setenta, em mais uma das crises do capitalismo — superprodução, quando a capacidade produtiva da economia excede a demanda do mercado, pois a massa de trabalhadores não tem poder aquisitivo suficiente. O humanismo sucumbiu, as empresas globalmente se hostilizaram competindo em, redução de custos, corte de pessoal que levou ao desemprego estrutural. O Toyotismo foi instrumentado com as técnicas comportamentalistas/humanistas e envenenado com o individual meritocratismo neoliberal: a chamada "tempestade-perfeita" do Neo-Fordismo

ESTRATÉGIAS NAS RELAÇÕES TRABALHO/EMPRESA

Estas mudanças afetam todos os aspectos nas relações trabalho/empresa e subjetividades estudadas pela psicologia organizacional e do trabalho. Desde a cultura, vida cotidiana e formas de pensar às práticas para enfrentar as crises decorrentes.

Em um mar calmo surgem ondas que vão se esparramando. Encontram barreiras, retornam e novas ondas se formam; há turbulências no embate entre umas e outras; é quase impossível identificar as ondulações de cada uma ao se sobreporem.  Neste vai e vem contínuo se formam vagalhões.

São marcos, erroneamente tomados como causa/efeito, pontos de rupturas qualitativas, efeito de acúmulos quantitativos, talvez marolas cuja relevância, díspare em termos de datas e locais, somente será percebida ao longo da história.

Melhor do que Toffler, Engels na Dialética da Natureza explica que as transformações seguem um ciclo de ascensão, apogeu e declínio. As ondas dos avanços tecnológicos promovem o aumento da apropriação da mais-valia com mais exploração da classe trabalhadora, impulsionam as lutas sociais, intensificam a desigualdade e fazem surgir novos modelos socioeconômicos. No apogeu, as contradições se tornam irreconciliáveis — os vagalhões —, há o enfraquecimento das estruturas existentes, novas ideias, valores e significados e começa o declínio. Nas empresas, novas estratégias organizacionais, relações de poder ascendem e o ciclo recomeça.

ASCENSÃO E APOGEU EM ONDAS

Taylorismo/Fordismo (1910–1980):

Supervisão direta e controle rígido dos trabalhadores.

Avaliação baseada em punições e recompensas, sem foco no desenvolvimento profissional.

Foco na disciplina e produção.

Região

Ascensão

Apogeu

Declínio

Estados Unidos e Europa:

1910

1940

1970

Japão:

1920

1950

1970

China:

1930

1950

1980

América do Sul e África:

1940

1960

1980


Comportamentalismo/Humanismo (1950–1990):

Aumento dos salários reais, impulsionado pelo crescimento econômico e pela organização dos trabalhadores.

Expansão dos benefícios: planos de saúde, férias, repouso remunerado, bônus, garantia de emprego.

Leis trabalhistas se consolidam, garantindo direitos básicos aos trabalhadores.

Região

Ascensão

Apogeu

Declínio

Estados Unidos e Europa:

1950

1960

1970

Japão:

1960

1970

1980

China:

1960

1970

1980

América do Sul e África:

1970

1980

1990

Toyotismo (1950–2010):

Declínio do Fordismo, com o surgimento de novas formas de organização do trabalho mais flexíveis e adaptáveis.

Foco na qualidade, na participação dos trabalhadores e na melhoria contínua e autoimposição de metas agressivas.

Diversificação das formas de trabalho, com crescimento do trabalho em equipe, da terceirização e equipes multidisciplinares.

Região

Ascensão

Apogeu

Declínio

Estados Unidos e Europa:

1970

1980

1990

Japão:

1950

1960

1980

China:

1980

1990

2000

América do Sul e África:

1990

2000

2010

 Neo-Fordismo (1980-?):

 Precarização do emprego, aumento da rotatividade de mão de obra, contratos precários e terceirização.

Trabalho como mercadoria, cujo custo deve ser reduzido.

Redução da estabilidade no emprego, com maior facilidade de demissão.

 Insegurança no mercado de trabalho.

Região

Ascensão

Apogeu

Declínio

Estados Unidos e Europa:

1980

1990

?

Japão:

1980

1990

?

China:

1990

2000

?

América do Sul e África:

1990

2000

?

 

DECLÍNIO DAS ONDAS

Segundo Engels, todo sistema social, por mais dominante que seja, carrega em si as sementes de sua própria negação. A onda do Neo-Fordismo não foge à regra. É possível listar pelo menos três contradições internas que apontam para seu declínio, embora não se possa ter certeza sobre quais seriam as formas futuras de organização do trabalho, subjetividades e ideologias constituídas e constituintes.

Aumento da Desigualdade: O modelo Neo-Fordista, ao privilegiar a flexibilidade e a terceirização, gerou um aumento da precariedade do trabalho e da concentração de renda, intensificando as contradições de classe e a insatisfação social. (Thomas Piketty – O Capital do Século XXI)

Crise Ambiental: A ênfase na produção em massa e no consumo desenfreado, características do Neo-Fordismo, contribuiu para o agravamento da crise ambiental, com o esgotamento de recursos naturais, a poluição e as mudanças climáticas. (Félix Guattari - O Capitalismo e a Esquizofrenia).

Crise do Estado Regulador: O Neo-Fordismo enfraqueceu o papel do Estado na regulação da economia e na proteção social, levando a falhas de mercado, instabilidade econômica e fragilização das políticas públicas. (Claus Offe - Discurso do Capitalismo: Contradições da Socialização da Produção).

Contradições Intrínsecas do Capitalismo e a Psicologia Organizacional

 

Um dos meus melhores alunos de um curso de Especialização em Psicologia Organizacional do Trabalho me propôs um dilema sobre as relações trabalho e empresa e o comportamento que parece paradoxal dos empresários ao definirem estratégias que, ao final, prejudicam os seus negócios.

Não foi possível naquela oportunidade dar uma resposta completa, pois fugia ao escopo da disciplina e conteúdo da aula. Entretanto, a pergunta é tão importante que não pode ficar sem resposta; é o que farei neste artigo.

        “Professor, eu li que existe uma contradição fundamental nas relações trabalho e empresa. Há um         excesso de mercadorias ofertadas que não podem ser compradas por quem as produzem — os                trabalhadores — pois não possuem renda suficiente. As causas disso seriam o baixo salário e a                precarização dos direitos trabalhistas, que fomentam crises sistêmicas e cíclicas. Ora, se isso os            prejudica, por que fazem?”

Antes de entrarmos diretamente na resposta, preciso de um pouco de paciência para comentar a dualidade da subjetividade: como somos criadores de significados e, ao mesmo tempo, produto de nossas circunstâncias sociais e históricas. Temos que nos instruir com Edmund Husserl, Jean-Paul Sartre e outros teóricos da fenomenologia e da teoria crítica. No final, eu indico fontes e sugiro leituras.

 UMA QUESTÃO DE SUBJETIVIDADE

A subjetividade é constituinte quando justifica os atos intencionais da consciência e dá forma ou sentido ao mundo. Por exemplo, quando um empresário tem certeza de que suas estratégias são as corretas e fazem sentido na sua percepção da realidade. A subjetividade é constituída quando já foi moldada pelas estruturas sociais, culturais e linguísticas. Aqui temos de nos apoiar em Michel Foucault, Pierre Bourdieu e outros teóricos que mostram como a subjetividade é condicionada por práticas discursivas, relações de poder e instituições sociais.

Dialeticamente, pode ser vista como uma tese, representando as formas estabelecidas e normativas de ser e entender. A subjetividade constituinte atua como uma antítese, oferecendo novas interpretações, resistências e transformações. A síntese resultante é uma nova forma de subjetividade que integra elementos tanto da constituinte quanto da constituída.

 As críticas ao modelo capitalista revelando suas contradições resultantes na exploração dos trabalhadores e geram suas crises são apresentadas por Karl Marx, Friedrich Engels. Comento estas críticas adiante. Contudo, há outras percepções; Adam Smith, John Stuart Mill, Friederich Hayek, Milton Friedman têm uma visão individualista da sociedade: nela, o livre mercado e a propriedade privada seriam os pilares do desenvolvimento econômico. A competição e o individualismo seriam os motores do progresso. 

 EMPRESÁRIO SUICIDA

O empresário suicida — segundo percepção e crítica do meu aluno — acredita na força da meritocracia, que terá cada trabalhador individualmente o poder de superar os limites estruturais e os melhores manterão vivo e aumentarão o nível de consumo.

 Em 1843, Charles Dickens escreveu um famoso texto, Um Conto de Natal. O personagem central é um empresário ganancioso, Ebenezer Scrooge. Estávamos na transição entre as Primeira e Segunda Revolução Industrial e as condições horrorosas do emprego e salário só comparáveis às subjetividades presentes no neoliberalismo contemporâneo.

Proponho criarmos um avatar, pedindo licença ao autor, para ilustrar no que acreditava Scrooge e no acredita hoje, por exemplo, o que chamamos de o Tiozão do Whatsapp. Pode ser um “pobre de direita”, talvez um empresário ou executivo que se informa apenas pelas redes sociais. Sua subjetividade é de uma versão mais radical do liberalismo do Século XIX, ainda que não saiba o que seja o neoliberalismo.

 Ele é um homem de meia-idade, acha que a homossexualidade é uma doença ou perversão, coisa de intelectuais comunistas, vai às manifestações vestindo camiseta amarela da Seleção e grita palavras de ordem que vêm do caminhão do trio elétrico.

 Acredita, ainda que não saiba a razão, que os pobres são pobres porque não se esforçam o suficiente; seus empregados devem ser gratos pelo emprego que lhes oferece; os benefícios sociais são criadores de vagabundos que querem viver às custas daqueles que trabalham de verdade e que a caridade é a solução dos problemas da pobreza.

 Sobre o desemprego julga que é um risco que penaliza os incompetentes e não decorre das crises do mercado. Se os trabalhadores não têm dinheiro, não é problema dele; sua estratégia é buscar novos mercados e novos consumidores. Os problemas sociais sempre existiram e sempre existirão, o papel dos empresários é gerar riqueza — e ele acredita que faz isso muito bem — cabendo a cada um lutar para trazer para si o maior pedaço dessa riqueza; sendo melhor que o governo não se meta. Subjetivamente aceita que as empresas e os empreendedores devem buscar o lucro que remunere o capital investido e também recompense o risco e a inteligência empresarial.

 MAIS-VALIA

Lucro, contabilmente falando, é a diferença entre a receita total e os custos totais, como mão de obra, materiais, impostos. Precisamos apelar para um conceito mais sofisticado, a mais-valia. Ela se refere à diferença entre o valor acrescentado à mercadoria pelo trabalhador na cadeia produtiva descontado o seu custo: salários, benefícios, direitos, etc. Esta diferença é apropriada pelas empresas. Curiosamente, em um mural da sede do Banco Bradesco — que comunista não é... —  há uma frase “Só o trabalho produz riquezas”, atribuída ao seu presidente Amador Aguiar, falecido em 1991.

Finalmente posso responder à indagação do meu aluno. 

“Por que os empresários têm estratégias nas relações com seus empregados que no contexto macroeconômico prejudicam a todos?” 

A lógica central das relações de produção neoliberais reside na acumulação do capital impulsionada pela expropriação da mais-valia. Esta exploração é intensificada nos momentos de crise pelas subjetividades constituídas e constituintes que recomendam a disputa pela competitividade absoluta e redução de custos para aumentar a margem de lucro, que inclui a mais-valia, reprimindo salários, suprimindo direitos, produzindo desemprego que, em um círculo vicioso, naturalizam a desigualdade como algo inerente ao sistema.

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SAIBA MAISis

·        David Harvey - O Novo Imperialismo. Discute a globalização e a expansão do capitalismo, fornecendo insights sobre as crises contemporâneas.

·        Engels, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Editora Boitempo, 2013.

·        Ernest Mandel - O Capitalismo Tardio: Uma análise das fases de desenvolvimento do capitalismo e suas crises.

·        Karl Marx - O Capital (Volume I): Esta obra seminal oferece uma análise detalhada da teoria da mais-valia e da dinâmica das crises capitalistas.

·        Negri, Antonio. Para um Marx Não Romântico. Editora Record, 2018.

·        Santos, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Capitalista: Para uma Nova Economia. Editora Cortez, 2018.