A digitalização das relações trabalhistas é um desafio complexo com implicações multifacetadas. A compreensão das dinâmicas que levam à desumanização exige postura ética dos gestores de Recursos Humanos das empresas.
Há alguns meses fui convidado para conversar com um grupo de jovens de uma comunidade – nome politicamente correto para as favelas – na periferia de São Paulo assistida por religiosos de uma associação eclesiástica beneficente.
Denunciei que trabalhavam com bicicletas alugadas de um banco, se endividavam com financiamento de motos, carros, ou com aluguéis extorsivos de locadoras, muitas vezes sem seguros e com cláusulas leoninas. Obedeciam a regras de operadoras de plataformas que lhes negavam direitos trabalhistas mínimos. Todas as despesas com manutenção, combustível, alimentação eram por sua conta. Não tinham repouso semanal remunerado, férias, planos de saúde, previsões para aposentadoria.
Provoquei uma revolta no grupo. Argumentavam que “eu queria tirar deles o seu trampo e a sua liberdade”. Na sua miopia, se percebiam como empreendedores autônomos, independentes e livres.
Não são livres! Sob o apelido falacioso de parceiros submetem-se a metas de produção e assiduidade. Os algoritmos das operadoras controlam os atendimentos, a remuneração caso a caso e a seleção dos trabalhadores. Os algoritmos são os grilhões dos novos capitães do mato da era digital nesta senzala virtual.
Chamam de liberdade o fato de não terem patrão, poderem trabalhar em várias empresas, definirem seus horários... Na prática, dependem para sua subsistência da exploração de vários patrões, concorrendo por pagamentos nos quais eles são a parte mais fraca na negociação e jornadas de muitas horas quando conseguem agendar um trampo, como dizem.
UBERIZAÇÃO É UMA FACETA DA GIG ECONOMY
O termo GIG poderia ser traduzido como trabalho-bico. Deriva de contratos de bandas musicais que se oferecem aos bares para se apresentarem a troco de gorjetas dos frequentadores.
Quando uma empresa chama um profissional para consertar uma cadeira quebrada, dar manutenção em um computador que travou, vendedores para suprir uma demanda extra no período de Natal ou um palestrante para a convenção de lançamento de um novo produto, contrata uma pessoa de forma individual, por projeto ou tarefa. São prestadores irregulares de serviço.
A uberização é um modelo de vínculo regular com empresas que capturam para si o ganho do trabalhador e os obrigam aos seus padrões operacionais. As plataformas, através de sofisticadas tecnologias digitais oferecem um tipo específico de gig economy contratando de forma contínua e regular serviços a serem prestados aos clientes delas, não aos clientes dos trabalhadores.
No Brasil, em 2017, houve relaxamento na legislação que permitiu que fosse terceirizada até mesmo a execução de tarefas ligadas à atividade essencial das empresas. Presentemente, disseminam-se os contratos chamados de pjotização, derivados da sigla PJ. Uma pessoa física é contratada como pessoa jurídica para burlar a legislação trabalhista.
Embora corrompendo a ética humanista da gestão de recursos humanos, a pjotização trouxe vantagens concretas para as empresas e ilusórias para os trabalhadores. As empresas se eximem das obrigações legais e dos custos trabalhistas; os empregados, sem os descontos para FGTS, INSS e outros encargos, iludem-se com o fato de sua remuneração líquida ser maior. Vendem barato seu futuro renunciando à aposentadoria e também o seu presente ao abdicarem de seus direitos de repouso semanal remunerado, férias, décimo terceiro, e indenização por demissão involuntária.
ALGORITMOS SÃO OS GRILHÕES VIRTUAIS
Os escravos eram avaliados e mantidos conforme demonstrassem ou não capacidade de produzir e de cumprir tarefas exigidas pelos seus senhores. Não havia nenhuma proteção aos direitos e à dignidade. As jornadas eram longas e exaustivas, não havia limite, tampouco descanso regular.
O controle era feito pelos capitães do mato. Também escravos, porém com alguns privilégios. Embora o uso da força e violência fossem práticas intimidatórias, faziam uso de redes de informações e delatores que os ajudavam a manter o controle sobre fugas, não cumprimento de metas e governança.
Estas informações eram passadas aos proprietários que as utilizavam para definir melhores perfis dos escravos a serem comprados futuramente, avaliar seus desempenhos e orientar quais mereciam ou não alguns privilégios ou punições.
Os uberizados são monitorados permanentemente por aplicativos e algoritmos que controlam suas atividades e desempenhos, sem intervenção humana explícita, pontuam quais merecem privilégios ou punições e definem os perfis daqueles com potencial de trazer melhores resultados para a empresa.
OS CAPITÃES DO MATO DA ERA DIGITAL
Uma macabra equação balanceava as horas, dias e semanas trabalhados, custo da alimentação e produtividade com o tempo de vida e utilidade do escravo, sua depreciação e valor de revenda. Os capitães do mato eram mais do que caçadores de fugitivos, atuavam também no manejo dos recursos – vá lá, humanos – preservando seu valor contábil. Era mais econômico dar-lhes alguns benefícios para mantê-los tranquilos na senzala e no trabalho do que acorrentados improdutivos, ou desvalorizados quando machucados por castigos.
Trabalhadores uberizados não se depreciam. Contabilmente, não são ativos permanentes, são custos variáveis da mercadoria vendida. Quando não produtivos, a mão invisível do mercado permite substituí-los sem custo, já que podem ser encontrados e perfilados em bancos de mão de obra digitalizados e compartilhados.
Três tendências estão se consolidando na gestão dos recursos humanos:
• A utilização cada vez mais significativa de técnicas da psicologia organizacional para instituir subjetividades nas relações entre a empresa e trabalhadores. Estímulos à aceitação das normas e cooptação das vontades para o controle psicossocial mais eficaz do que as seduções motivacionais herdadas do comportamentalismo;
• O enxugamento das áreas de recursos humanos criando o técnico generalista – erroneamente chamado de business partner – com responsabilidade multifuncional turbinada pela reengenharia Neofordista herdada dos modelos Toyotistas;
• Desumanização das relações com os trabalhadores substituídas pelos controles digitalizados, estatísticas e modelos de inteligência artificial no processo decisório; o gestor de recursos humanos cada vez mais reduzido a um gestor de planilhas sobre recursos humanos.
Há naturalização de recrutar, selecionar e alocar pessoas como recursos a serem utilizados em detrimento do bem-estar individual. Ainda, que adjetivados com o complemento desenvolvimento, os treinamentos online adestram para aceitação conformada de conteúdos e padrões imediatistas para o desempenho da tarefa ao invés de fomentar o aperfeiçoamento profissional; a avaliação de desempenho não contempla a integração da pessoa ao produto de seu trabalho; a liderança é estimulada a desconsiderar as causas estruturais dos conflitos e desmotivação dos empregados; por fim, as necessidades humanas são secundárias em face dos requisitos do processo produtivo e cumprimento das metas organizacionais.
O JOGO PERDE/PERDE QUE O RH PODE MUDAR PARA GANHA/GANHA
Privilegiar trabalhadores intermitentes da GIG Economy e a alta rotatividade dos uberizados prejudica a criação de cultura empresarial coesa e consistente, anula o comprometimento e engajamento. Os treinamentos breves e impessoais com conteúdo apenas operacionais corrompem a formação de equipes qualificadas e alinhadas com os valores organizacionais. A precarização das condições de trabalho cria um ambiente descompromissado com objetivos estratégicos da empresa. A fragmentação da força de trabalho e a falta de continuidade na comunicação levam a falhas operacionais.
A dialética ensina que no processo sócio-histórico há momentos de ruptura quando, percebamos ou não, as deficiências de modelos instituídos tornam-se evidentes levando a sua decadência e substituição por novas formas de produção. O papel fundamental do gestor de recursos humanos neste momento de ruptura é aplicar as ferramentas técnicas e éticas da psicologia organizacional mais do que as industriais e econômicas para implementar políticas e práticas humanamente eficazes:
• Tratar todos os trabalhadores com respeito e dignidade independentemente de sua posição, formação e hierarquia;
• Manter comunicação clara e honesta com todos os níveis da organização, dando oportunidade a participar de todas as decisões que os afetam, especialmente remuneração, garantia de emprego, oportunidades de promoção;
• Equilibrar os objetivos financeiros e estratégicos da empresa e o bem-estar dos empregados.
Nos fóruns internacionais – Davos, por exemplo – já são discutidos os impactos da desumanização das relações trabalho/empresa, precarização do emprego, disparidade salarial, necessidade de desenvolver habilidades e conhecimentos em um mundo em rápida mudança. Porém, o mais importante é a recuperação da dignidade e as condições de vida dos trabalhadores.
Não se espera que o gestor de recursos humanos seja um líder sindical, mas que esteja atento aos movimentos sócio-históricos que, cedo ou tarte impactarão os resultados de área e sua empregabilidade.
SAIBA MAIS.
- Schwarcz, Lilia e Starling, Heloísa. As Barbas do Imperador. Companhia das Letras, 2004. A vida dos escravos e as condições de trabalho durante o período colonial no Brasil.
- Schwartz, Stuart. A Escravidão no Brasil Colonial. Companhia das Letras, 2010. As práticas de avaliação e controle dos escravos.
- Kassem, M. R. (2021). A gestão de recursos humanos como Gig Economy: carrascos ou vítimas? (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo. Papel do RH na gig economy,
- Bessa, L. F., & Tomlinson, E. (2017). A emergência da economia de plataformas e seus impactos sobre o mundo do trabalho. Revista de Administração Contemporânea, 21(1), 142-162. precarização do trabalho, a flexibilização das relações trabalhistas e a concentração de poder nas plataformas digitais
- Paulo Henrique Amorim. Uberização: A Nova Forma de Exploração dos Trabalhadores. Editora Trabalho Vivo (2021). A uberização como forma de precarização e desvalorização do trabalho.
- Ricardo Antunes. Uberização e Capitalismo: Uma Análise Materialista Dialética. Boi Tempo Editorial. (2022). A uberização no contexto do capitalismo contemporâneo, e as desigualdades geradas pelo modelo.